- por bebê baumgarten -
Como seria a representação de uma quase lua, pensou. Seria feito de que poeira cósmica esse quase satélite descoberto vagando pela órbita da Terra no ano de 2024? Andava em direção ao teatro enquanto traçava possível conexão da lua com sua própria vida. Há alguns dias ouvira um podcast sobre a vida de Galileu Galilei recontada com poesia e beleza, desbravando quatro séculos desde sua existência até chegar nos humanos do século vinte e um. A terra que quase se movia, na impossibilidade de verdadeiramente se mover. Lembrou que ainda muito jovem ganhara o livro A vida de Galileu, do Brecht, e que na época, com o olhar ainda mais atento aos céus, mergulhara no mundo do teatro, imaginara as cenas, suas marcações, figurinos, diálogos descritos na obra. Uma história de quase fogueira e ideais num tempo em que escassez ou abundância definiam o que era precioso ou sem valor.
Seguiu seu caminhar nas calçadas úmidas, iluminadas pelas bruxuleantes luzes dos postes de Porto Alegre. A quase lua no céu. Uma espécie de balão em tom pastel com sua cordinha serpenteando o ar, levada pelo vento. Respirou fundo. Se aproximava do teatro e a presença íntima da sala lhe arrepiou. Gostava do ritual de escolher um lugar, olhar o entorno, as pessoas, o calor reconfortante. Uma quase realidade tentando se impor ao apagar das luzes e à fumaça cênica, que pouco a pouco invadia as almas cúmplices da plateia. Pensou nas centenas de vezes em que esteve em plateias, ansiosa pelo apagar das luzes – aquele breve momento de silêncio e escuridão antes do começo da viagem. Os corações compassados, os olhos que se movem na mesma direção, para lá e para cá. As cenas em sequência ditando o ritmo das sensações, a poltrona do teatro uma nave a adentrar nas vidas de lituanos e russos do século dezoito, dos habitantes das favelas de São Paulo, das periferias de Paris, de quilombos, cidades, casas e aldeias do mundo. Sentidos aguçados para escutar histórias de encontros, esperas e aflições, humanos sem habilidade de comunicação em solitários campos de algodão, em muros intransponíveis que ditam o fim de jogo ou montanhas que soterram os dias felizes.
Sua própria vida uma quase vida, pensa enquanto voa carregada pelo balão. Do alto, percebe que sua cordinha mal toca com a fina ponta o chão da terra que se move de forma imperceptível, na impossibilidade de verdadeiramente se mover. Confiante, desce ao palco, o corpo trêmulo, as mãos ainda geladas dos ventos frios dos céus. Sabe que fará a trajetória da luz sobre a cena e em breve estará aquecida sob os olhos que a miram, juntos, de um lado e para o outro do palco, acompanhando o corpo que se movimenta e ganha vida com sua própria quase lua orbitando acima de sua cabeça. Pensa no amor: um meteoro breve. Palco e plateia, encenação e realidade tentando desesperadamente coabitar o mesmo espaço.
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Duas imensas horas. Largas, cheias, preenchidas pela violência do amor em agonia. O olhar aberto e brilhante do homem voa com raiva certeira e encontra a dor nos olhos da mulher, encolhidos em pranto silencioso. Paralisada na poltrona do teatro, com a cara arregalada de espanto, percorre os caminhos de dentro. Eles contam que existe amor assim e que amores como esses não são passíveis de fim. Que são o próprio ar e atravessam os dias como pássaros coloridos em céus de chumbo. Não há encerramento para eles. Há que inventar, que decantar, que tirar das entranhas toda a dor e junto com ela as belezas, os filmes do Wong Kar-Way, as brisas de praia em dia de verão, as amêndoas e seu cheiro doce.
Duas horas, duas verdades tão distintas habitam o mesmo amor. Os corpos se encolhem, as colunas se dobram, a dor entra em seus corpos afiada como tiros na noite. Palavras, gritos, lembranças, apelos pairam no ar e se dissipam no vento que se move sobre os amantes. Não há fim, vencedores ou algo a ser vencido. Entram de peito aberto, desejo pulsante, e saem combalidos dessa guerra sem pátria, apenas com a ilusão de que o tempo vá acomodar sob seu generoso manto tudo o que gira dentro dos corpos em fuga.
Sai da sala de teatro e respira a brisa úmida da noite antes de atravessar a rua e embarcar no ônibus de volta pra casa.
imagem do espetáculo 'o encerramento do amor', por henri dos anjos
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