- por simone magalhães brito -
Quando o chão se abre, alguns não conseguem fugir. Coisas e pessoas queridas vão sumindo. Parece que Netuno puxou a tampa do ralo de sua banheira, Héstia foi dormir e esqueceu o fogo ligado, Tiamate soube que foi traída ou Pachamama, de tanto lavar e passar, enlouqueceu e não colocou mais a comida de Anúbis no pote. Porém, a verdade (aquela antiga, imprestável pra picar porque faz confetes muito feios) é que no dia que os deuses todos foram embora, quem fechou a porta (e riu e bebeu e rodopiou) foi a nova senhora do mundo: a vala comum. Enrolada no manto que roubou de Nossa Senhora Aparecida, anda por aí: uma rainha. E como ri! Sua boca é enorme, tantos dentes quanto ossos.
Por que alguns homens a amam tanto?
Será por fazer com alegria o trabalho deles? Ou será o vermelho da boca?
A senhora vem, abre o chão, engole quem precisa ser engolido e vai embora. Satisfeita. Gracias. Sem precisar se preocupar com os bastardos, aqueles homens sentem alívio. A vida é uma festa.
Uma noite, andei com meus cachorros na avenida mais movimentada da cidade. Estávamos na calçada, mas resolvi seguir pelo meio da rua, só minha e não dos ônibus. As luvas apertadas e o ar filtrado da máscara de tecido de bolinhas acordavam o corpo para dizer que não era sonho. Na volta, limparia as patas dos bichos com álcool e colocaria minha roupa para lavar imediatamente. Domingo de carnaval sem carnaval, a avenida toda para meus lobos desfilarem e meu coração ficar em paz com o plano perfeito: se minha filha começar a adoecer, vou me contaminar também, fingir falta de ar até que os bichos de saliva que esfreguei nos olhos e na boca façam a festa no meu corpo. Não ficaria na porta do hospital, quebraria as grades. Meu plano era ter força. Foi o caminhar onde motos e ônibus atropelam a qualquer hora que ia me dando ideias de como seguir sendo única.
Em casa, com o ar contado pelas paredes, o medo assobiava. Foi pela janela que muitos também viram a maldita rainha. Tranquila, dizia não ter nada a ver com aquela estória: eram só sacos pretos, covas rasas. Por mais que ela dissesse que trabalhava de outro jeito, me esqueçam, dava para sentir que era sua enorme boca que também se abria em pequenas bocas. Os meninos e meninas perdidos debaixo da terra também diziam: é ela!
Na televisão, muitos debates, especialistas e credenciais mil para garantir que não era ela, que essa senhora não existe, nunca existiu, que ninguém nunca viu essas crianças embaixo da terra, muito menos ouviu seu choro. Olhai os lírios do campo que não brotarão do asfalto. Esqueçam e vivam.
Agora, as avenidas estão engarrafadas e há muito barulho, mas se os cães ainda pudessem caminhar pelo meio da rua, daria para ver, pelo movimento de suas patas, que era ela, a vala comum, nossa padroeira. Os meninos gritam, os lobos urbanos uivam e, loucos, querem arrancar a coleira porque não é o tamanho das bocas que diz da presença de nossa senhora, é a procissão da vitória pisando a terra. Depois de muitos bailes e louvores, ninguém vai saber que a terra foi remexida.
(A senhora não para de dançar. Pede que a chamem de dancing queen. Alguns não conseguem fugir.)
Esqueçamos. E o seguro vai cobrir esses para-brisas estragados pela vergonha de sobreviver em alta velocidade.
foto: malu baumgarten
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