da série a história de Johny Skai
- por malu baumgarten -
Um dia escuro se estende lá fora. As copas amarelas das árvores se destacam sobre a grama ainda verde, e longe a fumaça exalada por um prédio baixo confunde-se com as brumas que envolvem os edifícios no horizonte. O céu sem cor tem a textura do algodão e uma chuva triste cai sobre o asfalto da rua, onde os carros rolam sem parar e o chão brilhante reflete a solidão do outono que entra. Na mesa, morangos, café forte com leite de aveia e torrada com geléia descansam na penumbra. As imensas janelas que vão do teto ao chão, e de parede a parede, quase não trazem luz. Johnny mira a paisagem que Clara batizou de seu Reino do Oeste, e pensa que este é também o outono dele que se inicia. O tempo da colheita.
Pensa na vida sem remorso. Trinta anos de um casamento estéril, filhos que só o amaram como o provedor de uma vida confortável, o trabalho estressante e sem apelo criativo. Uma existência sem graça, baseada no consumo e nas aparências. É certo que houve o tempo da juventude, quando a mulher o amava e o sexo era frequente, das viagens de bicicleta na França e férias em estações de esqui. Havia também amigos, casais que se esfumaçaram na memória, relacionamentos superficiais e de curta duração, afastados pela necessidade da esposa de ser o único foco da vida dele. Naquela época Tracy também trabalhava, e eles compraram sua primeira casa. A vida adulta era uma promessa.
Provindo da classe média abastada de Toronto, Johnny gostava de música alta, de fotografar com filme positivo e de fumar um baseado com os amigos, e se imaginava um rebelde. Fazia enorme sucesso com as meninas, porque era alto, moreno de pele, tinha um belo nariz romano e dava sexo oral, o que para a maioria de seus amigos protestantes era tabu. Conheceu Tracy aos dezenove anos, uma menina de família rica que o escolheu e não o largou. Ele era judeu, ela gentia, o que gerou drama suficiente por parte das famílias de ambos para mantê-los unidos contra um inimigo comum, e assim ficaram até que começaram a ter filhos, por imposição dela.
— Tu sabe como cozinham rãs? — ele perguntou a Clara, que entrava ofegante com as compras e virou-se para ele curiosa, as bochechas vermelhas de frio. — O bichinho é colocado vivo numa panela de água fria, e aos poucos se entorpece com o calor que vai aumentando, até que é tarde demais para pular fora.
O diagnóstico de esclerose múltipla fora a água fria na fervura da rã que ele era, pensa Johnny. Quando finalmente tomou coragem para sair de casa, deixou para trás todas as suas posses materiais, uma mulher decidida a arruinar quaisquer possibilidades de vida que ele pudesse ter dali para a frente e filhos que viriam a desprezá-lo, por influência da mãe.
Ele não caminha há quatro anos, e está perdendo a destreza das mãos, mas sabe que agora é a sua hora de viver. Abraça a morte e vive um amor sem fantasia, de longos silêncios e atos de cuidado diário, de gargalhadas infantis, de música alta e fotografias roubadas na rua. A mulher que dança à sua frente, linda e sorridente na escuridão do dia cinzento, tem 60 anos.
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