da série a história de Johnny Skai
- por malu baumgarten -
A chuva que bate no carro provoca um ruído contínuo. Os limpadores de para-brisa não dão conta da água que cai torrencial. À frente tudo o que se vê é uma massa líquida esbranquiçada, sem céu e sem estrada. O carro se move lentamente, e Johnny tenta distinguir aqui e ali um pedaço da faixa de asfalto, uma árvore, a distância entre seu carro e outro, que agora o ultrapassa. O lindo céu do Brasil e o verdor da estrada do sul dissolvem-se em medo primal. Falham-lhe os olhos, as pernas, falta-lhe sanidade para enfrentar essa natureza enfurecida. “Mantém a esquerda Johnny, tu tá desviando para a direita, assim vamos parar do outro lado da estrada”, diz a companheira. Johnny obedece. A mulher é sua linha de vida, é quem o salva do medo, da cegueira, das pernas que não obedecem.
O carro é um Sentra preto com embreagem automática, alugado há um mês em Porto Alegre. Rodou tranquilo os 400 quilômetros até a praia catarinense num dia de sol em janeiro. Johnny e a mulher viajaram cantando com o estéreo do automóvel as músicas preferidas de um e outro, felizes por estarem juntos, com o pé na estrada, pela primeira vez. Tudo é novo para Johnny, o azul intenso do céu, as pessoas amigáveis, as cores do verão. Em Toronto o céu é agora cinza-inverno. Acima de tudo o mar o mesmeriza, e embora ele não possa descer à praia com suas pernas, mais de uma vez a companheira pediu aos bombeiros salva-vidas que o carregassem até a areia, onde ele repousou entre mulheres com biquínis ínfimos e criancinhas que brincavam com cachorros, o sol no poente de uma quentura que ele desejou nunca acabasse.
Os primeiros sinais de que nem tudo estava bem chegaram devagar. Uma certa dificuldade para alcançar o sanitário, uma queda no chuveiro. Dirigindo nas estradas de terra, a mulher dizia “À esquerda Johnny, vamos cair nessa vala à direita”, ou “Cuidado, tu vai atropelar o velho de bicicleta”. Ele reclamava das pernas, que se enrijeciam, não queriam executar nem os movimentos mínimos necessários para dirigir o carro. Ela notou que seu olho direito estava um pouco esbugalhado, perguntou, ele confirmou, a vista naquele lado estava embaçada. No dia da volta a chuva começou mansa e cresceu grande.
Johnny tem medo de seus olhos que não veem, das pernas que não reconhecem comando. A estrada está escura, a noite veio cedo. Há dez anos, deixara o consultório médico numa tarde clara de abril, as palavras cruas do médico doendo em seus ouvidos: “O senhor sofre de uma condição neurológica degenerativa incurável, que só vai piorar com o tempo”. Johnny não quer morrer. Com seus olhos quase cegos ele mira a estrada, sente a mão quente da mulher no braço, ouve a voz dela repetindo, “tu consegue Johnny, nós vamos chegar, eu estou contigo.” Não, ele não vai morrer. Seu corpo o vem traindo há muito tempo, mas agora ele tem a mulher, e é ela que o salva da cegueira, das pernas que não obedecem, da brutalidade do mundo.
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