- por lucia pouchain -
Eu deveria estar em casa com a barriga grudada no taque pra acabar de lavar a roupa do seu Jorge e aproveitar o sol pra secar tudo bem rápido e dar tempo de entregar na hora do almoço, receber, e ainda pedir um ovo emprestado — desses empréstimos que nunca devolvemos porque a pessoa diz: não se preocupe, imagina. Eu imagino, sim, imagino o ovo cozido pro meu almoço, matando minha fome enquanto suponho meus filhos satisfeitos com a comida da escola. Antônio, há dois dias que não aparece.
Falta de dinheiro me deixa de mau-humor. Pior que isso, só choro de criança querendo comer e eu não tendo o que dar. Uma batata, que é o que tenho em casa, não mata a fome dos quatro. A minha sim, principalmente se seu Jorge me emprestar um ovo pra complementar.
Mas não. Eu aqui nessa fila. Sabia que aqueles urubus rodando perto do riacho era mau presságio. Assim que abri a porta de casa pra colocar os meninos no rumo da escola e dei de cara com aquelas aves pretas, fiz sinal da cruz três vezes imaginando me livrar de qualquer coisa ruim. Comecei a lavagem das roupas quando os quatro apareceram dizendo que foram liberados, e pior, sem sequer um lanche. Era só o que me faltava. Ainda vou arrumar tempo pra reclamar na escola. O que criança tem a ver com dia de reunião dos professores? Eles que se reúnam, a hora que quiserem, o que não podem é deixar de dar comida pra criançada. Nem lanche, nem almoço. E agora tenho que parar meu serviço, juntar o que tiver de dinheiro e ver o que consigo comprar pra dar de comer a eles. Pari, agora que os alimente.
Se não fosse pela águia e a borboleta, que acho tão bonitos, teria jogado no bicho hoje cedo depois de ver aquele bando de urubus rodando no céu. Ver esse bicho feio carniceiro e pensar na borboleta não faz sentido pra mim; nem na águia, que nunca vi. Eu aqui nessa fila que não acaba. As crianças em casa, esperando a comida. Os urubus, pro lado do riacho. Mas criança é bicho que os anjos protegem. Os bêbados também. Nunca vi. Não sabem mais nem quem são de tão diluído o sangue no álcool, mas conseguem chegar em casa. E se não chegam, é rabo-de-saia, pode ter certeza. Notícia ruim, vem logo, e se não veio, a gente já pode imaginar. Por isso nem me preocupo. Só sei que Antônio vai ouvir muito. Se tem dinheiro pra gastar com cachaça, que me dê mais pra colocar comida na mesa.
Um quilo de fubá, e sal. Pelo pouco que sei contar, vai dar. Queria poder levar um quilo de açúcar também, derreto na panela com água e faço um puxa pra distrair as crianças. Vou deixar o sal e levar o açúcar.
Se essa fila andar e der tempo de lavar e secar a roupa pra entregar, recebo ainda hoje e posso voltar pra comprar alguns pães e um litro de leite pra noite. Meus olhos não saem do chão à procura de alguma moeda perdida. O senhor que está atrás de mim deixa um pacote de sal se esparramar no chão (que desperdício!). Tento colocar um pouco em cima da folha do encarte, mas logo vem um rapaz com vassoura e pá de lixo varrer a bagunça. Ele diz pra eu não me preocupar e eu quase respondo que minha única preocupação é ele varrer tudo antes que eu consiga pegar um pouco. Ele diz que não posso fazer o que estou fazendo e eu digo que quero apenas ajudar. Ele chama o segurança que tenta tirar da minha mão o encarte enrolado com um pouco de sal, o suficiente para dar gosto no fubá. Não entendo o motivo de estarem me olhando de cara feia, não fui eu que fiz a sujeirada e só estou pegando um pouco do que eles jogarão no lixo. Se tem uma coisa que me tira do sério é o olhar desconfiado das pessoas pra cima de mim. Estão achando o quê? Que estou roubando? Roubo é o que me cobram por tão pouca coisa. Roubo é o que me pagam pelos meus serviços. Acabo minhas mãos e minhas costas emborcada naquele tanque pra lavar a sujeira dos outros, igual esse rapaz que está varrendo a bagunça que o senhor fez e nem pagará por isso. Me lembro dos urubus rodando no céu enquanto enfio o encarte dobrado no bolso da calça e me viro pra frente aguardando minha vez, ignorando os olhares e sacudidas de cabeça em minha direção. Vão cuidar da vida de vocês que eu estou cuidando da minha.
Antônio que não me apareça em casa hoje pra comer comida das crianças, a menos que traga dinheiro, senão, não vou ter dó, não. Pode me contar o drama que for, mas não sou besta. Ele que vá comer o que quiser lá pros lados de onde veio. É ruindade? É. Assim como é ruindade o que estão fazendo comigo aqui, e a culpa é do Antônio.
Nos supermercados, os caixas separados pra agilizar a vida de quem está comprando pouca coisa, não servem de nada, atendem também os velhos lerdos, e nunca vi lugar pra ter mais velho do que aqui. Os próprios caixas são lentos, parecem todos iniciantes. Essa fila que não anda e o calor que aumenta. Ou é minha raiva? Raiva sempre faz o sangue da gente ferver. Estou com raiva do Antônio, da escola, dos velhos na minha frente, do velho atrás de mim, do rapaz da limpeza, do segurança, do caixa lerdo, desse povo todo me olhando. E dos urubus. Ao menos tenho sal no bolso para o fubá e açúcar para adoçar a vida.
No meio do caminho de volta pra casa despenca um temporal. E vejo Antônio vindo troncho do outro lado da estrada. Aqueles urubus sabiam, do Antônio e da chuva. Não tem mais nenhum no céu. Nem para comerem o fígado dele por mim, agora eu mesma terei que fazer isso.
*foto bebê baumgarten
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