- por bebê baumgarten -
I
Estava exausto. Mal havia amanhecido e eu já queria que aquele dia chegasse ao fim. Abri a porta do carro para Lúcia, que se movimentava lentamente, como em um filme. Os olhos vermelhos, a dor escorrendo pra fora. Daria poema. Não é fácil chegar ao fim e eu havia amado aquela mulher. Nos bons tempos brincávamos o tempo todo, corríamos na praia e transávamos no mar como dois adolescentes. Ela era leve, otimista, cheia de luz.
Vivíamos em harmonia na sua casa. Lúcia conhecia minhas fraquezas, me deixava quieto quando eu estava às vésperas de finalizar um livro ou mesmo quando tinha meus períodos ruins, os porres, as noites passadas fora de casa. Ela sabia que eu a amava e que estaria de volta renovado e calmo. Mas o passar do tempo tem seu preço e começaram as cobranças, as discussões, a tristeza. Por dias a fio falávamos pouco, os abraços rareavam e até nosso jazz no fim da tarde era melancólico e silencioso. O badalar do sino da igreja em meio aos nossos orgasmos nas tardes de sábado não mais nos fazia rir.
Não sei onde fizemos a curva. Naquela manhã cinza, o vento fazia voar papéis como bandeirolas de São João, e nos olhos de Lúcia havia um rio de águas turbulentas. Embarcamos no carro em direção à sua casa. Quando pus o pé na soleira da porta senti o peso de toda uma vida. O corredor, a escada, o quarto onde fomos tão felizes, as malas já em cima da cama. Em silêncio peguei minhas coisas e saí. Foi difícil atravessar a casa e sair pela porta da frente. Só quando a noite caiu me animei a sair da cama para encontrar Isabela e desaguar toda a minha dor em seus braços.
II
Estava paralisada. Sabia que ao me mexer dali e dar o primeiro passo em direção ao automóvel, estaria caminhando para o fim. Vicente me acompanhou lentamente, com um olhar de compaixão que doía como ferro em brasa. Abriu a porta do carro e entrei. As lágrimas escorriam sem controle e meus olhos passearam pela paisagem em câmera lenta, como em um filme, no dia cinza de vento cortando a pele. Ouvi em silêncio a trilha sonora daquela cena. Tocava ‘Nature Boy’, do Nat King Cole, e lembrei as nossas tardes frias de sábado no quarto, com chocolate Lindt e chá de hortelã.
Nossa casa era um oásis. Deixávamos na porta de entrada os momentos tensos. Era como se o corredor fosse uma passagem secreta para um mundo todo nosso, de prazeres, mesas postas, filmes, música cubana e desejo por todos os poros. Vicente tinha temperamento e por vezes ficava ensimesmado, quieto, principalmente quando estava no processo de criação de um novo livro. Então eu o deixava lidar com suas introspecções, seus fantasmas. Mesmo quando começou a sair e voltar bêbado na madrugada ou a se insinuar para as minhas amigas, não pude acreditar. Amava-o demais, havia erguido um altar para o nosso amor, como se já não estivéssemos mais no plano terreno e orbitássemos o espaço sideral.
Não sei onde virou a roda, mas lembro das últimas discussões e de me enxergar descontrolada, ora desejando que aquilo parasse, ora tentando desesperadamente reviver um amor agonizante que eu, só eu, via ainda tão vivo. Quando coloquei a chave na fechadura e entramos na casa tudo era névoa. O vento uivava nas frestas da janela e o corredor parecia um labirinto gelado e árido. Vicente subiu as escadas e em minutos estava na porta com suas malas. Antes de abrir a porta me olhou e saiu. Desabei no chão gelado de cerâmica vermelha e ali permaneci. Quando a noite chegou, levantei tonta, atravessei o corredor, subi as escadas e entrei no quarto onde fomos tão felizes. Deitei encolhida no meu lado da cama e chorei até dormir.
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