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frestas

- por bebê baumgarten -



 

Abro uma fresta e espio. Há bruma lá fora. Foi-se o tempo solar, o tempo de correr nas calçadas, o cheiro de grama fresca. Há bruma lá fora e não há nada além do shopping, dos canteiros de obras, da fuligem. Dentro das casas nos oferecem imagens paradisíacas, juventude, felicidade em pratos gourmets. Viagens para um futuro que não há.  Nos vendem vidas perfeitas com família de novela e milagres pra rugas – como se a velhice já não fosse um milagre. Entram pelas frestas e arranjam meios atrativos de nos convencer que o mundo está feliz e que o sol voltará a brilhar. Tomo coragem e abro a porta. Abro logo inteira. Não temo mais. Observo atentamente a rua, aperto o olhar pra ver através da bruma. Respiro a fumaça que vem de fora. Não sinto o cheiro bom de terra molhada dos dias vivos.

 

Ponho o pé pra fora da soleira da porta. É possível que a araucária ainda esteja lá, ao lado da igreja, majestosa e imponente. A única coisa da rua que se mantém imponente. Começo lentamente a andar. Conto os passos pra não me perder. Sei o número exato. Os braços vão à frente, tateando, procurando o que o olhar não me mostra. Imagino meus vizinhos também andando nas ruas, braços pra frente e pra cima sacolejando como bonecos de posto de gasolina. Fico sem saber se rio ou se choro. Acho comoventes os bonecos de posto, lá sozinhos, sacolejando os braços nas alturas, precisando tanto de atenção e toda aquela gente indiferente nos seus carros com vidros fumês. Invisíveis é o que eles são. Sinto empatia.

 

Não se enxerga um palmo adiante do nariz. O mundo acabou. Enquanto conta seus mortos, o cerrado brasileiro pega fogo aniquilando parte da fauna já em extinção e os povos originários são atingidos em cheio pela doença e pela ganância do homem branco. A humanidade apodrece. É possível, vez ou outra, vislumbrar um resto de dias felizes, retalhos de carnaval, ecos de brincadeiras de crianças em balanços coloridos e até sentir uma espécie de esperança antes que tudo desapareça novamente na bruma por infinitos dias. Abro a porta. Abro logo inteira. Não temo mais. Entro na casa. Desligo o outro mundo, arranco os fios das tomadas pra não haver riscos. Fecho todas as frestas, não deixo uma sequer. Me recosto, exausta, em paz, e imagino a janela lateral do quarto aberta, um cheiro de flor e o barulho das folhas da pitangueira ao vento.

 

*foto: maíra baumgarten

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1 commento


lamentável, que tempos são esses ?


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