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embarcação

- por maíra baumgarten -



Eu vejo aquele rio a deslizar o tempo atravessar meu vilarejo e às vezes largo o afazer me pego em sonho a navegar Xote de Navegação (Chico Buarque e Dominguinhos)


Deslizo no rio de águas profundas e velozes. Comigo as irmãs que recebi da vida e a filha, ser iluminado cujos rebentos são o barco do meu futuro. Nas mais remotas memórias está o rio e o impulso de conhecer e desbravar.

No início, as águas são lentas, por vezes, tediosas. Assustadoras quase sempre. Ultrapassar o abismo da comunicação sobre o fio da navalha é imenso desafio. As solitárias paisagens da infância, sua aridez e asperezas deixam marcas indeléveis na menina que fui. Mas há, também, beleza, descobertas: as histórias, o primeiro livro, o carinho desmedido da mãe, os momentos com a avó. Minha embarcação chama-se, então, paciência, a pendular com o movimento do riomar.

Adolescente, sinto a lenta oscilação do tempo a se alterar. Seus ritmos sincopados, incertos e difíceis, suas aguilhoadas e provocações. Quantas vezes meu barco salva-se de naufragar nessas lamacentas e escuras águas, que se tornam rápidas como corredeiras. Por mim passam as disputas no colégio, as aulas de literatura, que eu tanto amava, os treinos de vôlei, as gêmeas idênticas, que só eu sabia diferenciar, pois uma delas era minha melhor amiga, as reuniões dançantes ao som de Roberto Carlos e os bailes de carnaval no clube com muita marchinha e samba.

Tanta coisa... E aí a descoberta de novos amigos. Aquela preferida, que conhecia outros de onde morava, perto do cinema Castelo. A minha turma daquilo que chamávamos a Zona, local no qual nos encontrávamos para conversar e fazer música. Namorados também vêm no fluxo: o cabeludo hippie, por coincidência, filho de um amigo do meu pai, por quem minha irmã de dez anos logo se apaixonou também; e o outro, lindo, de nome forte, veio a ser meu primeiro namorado sério. Mais amigos: o rapaz negro, muito pobre que dedilhava um violão como ninguém, o intelectual, mais velho e estudado, nosso político. O filósofo que criou um jornal produzido a mão e o namorado da minha amiga, que tocava guitarra e amava os Beatles e os Rolling Stones.

O olhar estendido para as margens vislumbra formas e cores, a flor que desabrocha e já se esvai, a música em nós, a respiração ofegante e, logo, tudo desvanece na esteira da passagem para a reflexão, outra existência, outros amigos. O tempo segue o ritmo da vida: vertiginoso ou calmo. O barco cavalga ondas no riomar, as tempestades amainam e alguém grita da ribanceira que navega para trás.

No convés, transfigurada pelo sol do verão dos meus dias, manejo o timão, insegura nas águas do rio, que é sem fim. Busco um lugar: “...confuso casarão onde os sonhos são reais e a vida não”.


Agradeço pela inspiração a

W. Somerset Maugham - O Fio da Navalha,

Chico Buarque - A Moça do Sonho.


Texto e imagem ©Maíra Baumgarten

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