- por malu baumgarten -
Lá em casa era assim a mãe era o amor da minha vida e a minha irmãzinha pequena era o bebê ela era linda graciosa e gordinha mas quando a gente brigava eu ficava má e chamava ela de gorda balofa espero que tenha me perdoado depois de uma vida inteira acho que sim ela é do tipo que perdoa e até a outra minha irmã mais velha acho que me perdoou por ter nascido e roubado dela a mãe embora por muito tempo ela não tenha me absolvido dessa culpa éramos como cão e gato e eu tinha as palavras mais ferinas ela era maior e me chutava as canelas mas eu a segurava pelos pulsos e cravava as unhas a mãe não gostava daquilo dizia que era uma agonia ver as filhas brigarem mas com certeza gostava de ser adorada por cada uma de nós porque era boa tão boa e cúmplice o tempo todo nós a disputávamos como bestas queríamos o amor dela só para nós eu pelo menos queria fantasiava que era especial mas ninguém era porque ela sabia amar a todas e muito tinha um coração enorme assim crescemos aprendendo a nos amar mas não foi assim tão fácil a pequena e eu éramos parceiras nós nascemos com apenas dois anos de diferença brincávamos juntas apesar dos ciúmes mútuos ela que vivia pendurada na saia da mãe a boa filha o bebê e a outra era grande tinha responsabilidade podia decidir coisas e comprar livros além do mais nasceu bem antes e eu pensava ciumenta que eu não tinha nada que não podia me pendurar na saia e nem tinha o direito de ser mocinha porque nem era mesmo então fiquei selvagem uma guriazinha braba e arrogante e mais livre que as outras porque ninguém me segurava a única coisa que me continha era o amor da mãe por ela eu me cuidei e cuidei como pude da irmã menor quando crescemos pela vida afora e também cuidei da outra a outra acha que foi ela quem tomou conta de nós todas e até da mãe mas não nós somos diferentes mas iguais no amor que é generoso mesmo que eu tenha cobiçado os namorados da irmã mais velha ela tinha dezesseis anos e eu dez quando ela trazia os amigos para ouvir música na sala não sei o que bebiam os amigos fumavam maconha por certo eram cabeludos e bem diferentes com calças boca de sino e camisetas manchadas de cordão amarrado e ouviam In-A-Gadda-Da-Vida com o Iron Butterfly um nome e tanto tinha essa banda a música ficou na minha lembrança para sempre ocupava um lado todinho do disco de vinil que chamávamos de elepê das iniciais do inglês longplay eu ficava por ali espiando satisfeita mas quando os meninos me davam muita atenção a danada me corria para o quarto e de manhã eu descia as escadas para encontrar todos dormindo esparramados e tortos no chão da salinha o namorado dela era sempre o mais bonito de cabelo comprido e cara limpa a casa fedia a cigarro mas a mãe também fumava fumou a vida inteira quarenta cigarros por dia a gente achava isso normal e ouvíamos música na eletrola da sala só que quando os meninos maconheiros não estavam lá a música era Dorival Caymmi e Elizeth Cardoso Chico Buarque e Chopin e o pai não estava lá não tinha nunca estado lá nas minhas memórias porque foi embora viver com outra mulher antes que eu e a pequena pudéssemos lembrar dele na casa ele vinha almoçar com a gente as vezes então crescemos assim disputando o amor da mãe e amando umas às outras no final das contas com ciúme e tudo.
foto: arquivo da família Baumgarten - da esquerda para a direita Bebê Baumgarten, Elisabeth Baumgarten (mãe) Maíra Baumgarten, Carlos Alexandre Baumgarten (o primo muito amado), e Malu Baumgarten à frente.
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