- por bebê baumgarten -
As coisas andavam de mal a pior. Todo o dia vinha uma chateação. Sentado num dos bancos mais ao fundo do ônibus, tinha os olhos bem abertos, as pupilas dilatadas e suava em bicas. As janelas estavam fechadas e uma modorra deixava o ar escasso, quase irrespirável com a máscara. As mãos irrequietas não achavam lugar para se acomodar. Vicente tamborilava os dedos no braço do assento ao mesmo tempo em que sacudia as pernas. ‘Ora é a Lúcia a torrar a paciência com essa história de alcoolismo, ora é o produtor a se fazer de salame e não dar uma resposta definitiva sobre a data de lançamento do disco’, pensava a caminho do trabalho na livraria. ‘E, além disso, só chove nessa merda de cidade!’
Começava todo o santo dia sacolejando no ônibus apinhado de gente, tentando se preservar de um vírus mortal que assolava a população. Como se não bastasse, era obrigado a conviver com pessoas sem máscaras na rua, desafiando a própria morte e a morte dos outros com aquelas caras deslavadas. Seu estômago doía sem parar e, pra completar, Lúcia vinha repetindo uma ladainha nos últimos dias: “Olha aí como tá teu estômago, daqui a pouco vai ficar com úlcera! Vê se cresce, Vicente!”
– Uma merda que vou crescer! Que papo escroto é esse? Já comprei as pastilhas antiácidas e vou começar a tomar. Eu, um homem quase de meia-idade, tendo que ouvir esse papinho xarope.
O trânsito estava parado. O ônibus andava dez metros, parava, andava mais dez, parava de novo. Vicente tirou a camisa que usava sobre a camiseta. Uma mancha de suor crescia nas axilas e já era visível no peito. Seus olhos ficavam mais esbugalhados a cada parada no engarrafamento. “Só pode ser a porra de um acidente. Mas que dia de cão, pelamordedeus! E não são nem 9h da manhã”, pensava já quase num murmúrio, mastigando a própria língua.
No trajeto havia galhos de árvores caídos, resultado de uma ventania. Vicente ouvira no noticiário que era um tipo de ciclone. “Ciclone bomba, que palhaçada. Agora todo o dia tem um novo nome pra uma tempestade. Ano passado era ciclone extratropical, agora ciclone bomba!”. A tripa de ônibus mal andava no corredor exclusivo e nas pistas reservadas aos carros era ainda pior. “O Flávio tá me enrolando e tudo o que quero é lançar logo esse disco antes que eu morra de COVID ou de cirrose”. Não podia mais. Não aguentava mais esperar por Flávio, não queria mais ouvir o blá blá blá de Lúcia, estava sem ar, espremido no ônibus, suando toda a vodca de ontem e com o estômago em chamas. Levantou-se e começou a gritar:
− Abre essa porra dessa porta! Tô sem ar aqui, quero descer!
O motorista tentou argumentar. Não era ponto de parada, não podia abrir, não era permitido, mas Vicente estava aos gritos, o ônibus inteiro com os olhos cravados nele. Até que a porta enfim se abriu e Vicente desceu. Ficou parado por apenas alguns segundos no canteiro central da Osvaldo Aranha. Tempo suficiente para lhe cair na cabeça uma folha de palmeira, desprendida lá do alto da árvore pelo ciclone bomba.
Comments