as filhas, as mães, as avós
- bebê
- 25 de out. de 2020
- 2 min de leitura
- por mar becker -

I
resta sempre uma palavra muda na minha boca
sempre a mesma palavra trazida da infância, dissolvendo-se na boca
como uma hóstia
II
eu e minha irmã tínhamos cada uma
uma boneca que era como filha, e essas cuidávamos com um zelo sem medida
nas noites de frio, deitávamos elas nas nossas camas, para dormirem junto
e havia toda vez um beijo de boa-noite, e pelas mãos íamos cercando seus corpinhos de pano com relâmpagos
.
éramos muito meninas
os cabelos ainda muito finos, como se tivessem sido feitos por bichos da seda. na pele, os sinais da lua, do eclipse. a sombra no púbis, no umbigo
o sono respirando
nos lábios entreabertos. uma mesma noite atravessava os anos pela boca da mãe até nossas bocas
e das nossas bocas até a boca das bonecas
num ciclo de perpetuação
da fome
VI
sempre que costurava, minha mãe parecia eterna. eu me sentava no chão mesmo, e à sombra do seu corpo meu corpo crescia. quase não falávamos uma com a outra
quando ocorria de falarmos era numa língua composta por uma única palavra, hoje impronunciável
tudo em mim era medo. sentia, por exemplo, que se tocasse minha mãe poderia vir a romper a linha
a única linha invisível
entre tantas outras, visíveis, desenrolando-se continuamente dos carretéis na máquina de costura. por isso não a tocava. e seguia crendo que assim ficava assegurada a manutenção de algum tipo de equilíbrio de cena
.
na mesa de corte, uma almofadinha crivada de alfinetes e agulhas
a janela aberta, e a luz cintilando na ponta da agulha mais alta, como o dedo
de um deus doméstico de inox
VII
em menos de uma semana o chão ficava outra vez tapado de retalhos
eu e minha irmã juntávamos os maiores
pondo-os numa sacola
era com eles que costurávamos os cueiros para nossas bonecas
(coisa malfeita, de um artesanato inábil)
na hora de enrolar os corpinhos, muitas das remendas se abriam
ainda não tínhamos mãos para o trabalho maligno da sutura
.
as manequins nos acompanhavam, seus olhos vazios
eram mulheres paradas no meio do caminho, estátuas de sal
bíblicas mulheres de ló
foto: Malu Baumgarten
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