- por eduarda salaviza manso -
Fazia tempo que Simão não entrava num templo. A última vez tinha sido por causa do funeral dum amigo. Mas numa tarde sufocante de agosto com os termómetros a marcarem 41º, quando se deslocava a pé no centro da cidade, deparou-se com uma igreja a meio do caminho: ali poderia refrescar-se e descansar um pouco. Enquanto subia a escadaria que lhe dava acesso reparou num homem sentado no último degrau. Apesar do rosto marcado e da barba longa, parecia ainda jovem. Só tinha uma das pernas e junto dele havia um par de muletas, e uma garrafa de vinho. Logo depois, à entrada da igreja, estava uma mulher que aparentava ser de meia-idade. Tinha o cabelo comprido e desalinhado, vestia um top cor de rosa e uma saia de ganga justa e curta a envolver-lhe parte do corpo robusto. No seu rosto destacava-se uma pala preta sobre o olho direito. Dirigiu-se a ele mostrando a boca desdentada: “Ajude-me com qualquer coisinha, é para comer.” Simão ignorou-a e entrou na igreja. Atravessou vagarosamente o corredor central, onde um ou outro raio de sol filtrado pelos vitrais, incidia no chão de pedra branca, insuficiente para contrariar o lusco-fusco em que a igreja estava mergulhada.
Já sentado num dos bancos corridos de madeira, Simão observou em redor os frescos da nave, os quadros e esculturas de santos e santas, o retábulo, o altar. Sentiu um silêncio sepulcral, um silêncio que parecia sustentar o peso do mundo inteiro. Depois apercebeu-se de que embora só, não estava sozinho: meia dúzia de turistas japoneses de telemóveis em punho tiravam fotografias a cada instante, e junto ao confessionário uma mulher vestida de preto da cabeça aos pés, de vassoura em punho, varria o chão.
Um vulto aproximou-se e Simão estranhou que se sentasse justamente ao seu lado, uma vez que todos os bancos da igreja estavam desocupados. O homem encostou as muletas às costas do banco da sua frente, e Simão sem mesmo o olhar, percebeu que se tratava do mendigo perneta que vira à entrada.
O homem respirou fundo e não tardou e dizer:
— Ah, aqui está mais fresco!
Silêncio.
Virando-se para Simão, insistiu:
— Você também veio pró fresquinho, né? Não tem cara de quem veio rezar.
— Pois.
— Eu cá tenho que fazer tempo pra festa, mais logo.
Simão encarou-o pela primeira vez:
— Ai sim? Há uma festa na Igreja?
— Isso é que era bom! Este padre é assim – levantou a mão fechada em sinal de avareza – não dá nada a ninguém.
— Ah, então que festa é essa?
— Sabe, eu mais uns colegas encontramos-se aqui uma vez por mês, sempre ó dia um. Ajuntamos as moedas de todos e compramos pão, chouriços, álvezes até dá pra queijo. E vinho. Vinho não pode faltar, né? – piscou o olho ao mesmo tempo que deu uma leve cotovelada no braço de Simão.
Este, desconfortável com o gesto de intimidade do homem, porém curioso à cerca dele, retorquiu:
— Claro, festa sem vinho não é festa.
— Olhe, vamos todos pró jardim aqui atrás da igreja à noite, a comer e buber.
— E juntam-se muitos?
— Seis… seis não agora já semos só cinco. Um ficou debaixo dum comboio no outro dia. Era bom tipo, o Camolas. Mas olhe, gozou bem a vida até vir parar à rua.
— Como é que isso aconteceu?
— Trabalhava num circo e nem ganhava mal, mas andava metido com a trapezista que era a mulher do dono e atão o homem descobriu e botou-o a andar dali pra fora. O Camolas ficou sem a gaja e sem o trabalho.
— Coitado dele.
A mulher que varria o chão, agora mais próxima dos dois, empunhou a vassoura no ar, e disse bem alto:
— Vocês aí, caluda. Estamos na casa de Deus.
— Ui, aquela ali é cá uma bruxa, você nem imagina. — disse o perneta, baixando a voz.
Simão ignorou o à parte, e voltou ao que lhe interessava:
— Então e quem são os outros que vêm à festa?
— Olhe lá, você faz muitas perguntas.
— Desculpe. Se estou a incomodá-lo não falamos mais nisso.
Breve silêncio, interrompido pelo perneta:
— Passou-me pela cabeça que você era um cabrão dum jornalista daqueles que falam ca gente e depois vão e escrevem uma data de mentiras sobre os pobres: que andam todos no gamanço, que…
— Que não querem trabalhar, que são todos uns bêbados, o costume.
— Afinal, parece que você não é desses, até deve ser um gajo bacano. Se quiser, continuamos a falar. Também não tenho mais nada pra fazer, né? — encolheu os ombros.
Aproveitando a confiança que o outro demostrara, Simão arriscou:
— E você, como é que veio parar à rua?
— Andava a trabalhar nas obras, e caiu-me um bloco de cimento em cima e esmagou-me a perna, tiveram de cortá-la no hospital. Nunca mais pude trabalhar, perdi a casa…
— Não tinha seguro de acidentes de trabalho?
— O filho da puta do patrão nunca fezi-o, e despediu-me sem pagar a indenização. Olhe, vivo na rua há dois anos.
— Mas isso é ilegal.
— Vocês doutores não percebem nada. Prós pobres nada é ilegal.
Simão percebia sim, mas de uma forma abstrata e não porque o sentisse na pele. Engoliu em seco.
— Então diga-me lá mais coisas dessa festa, são só homens?
— Acha que somos paneleiros, ou quê?
— Desculpe, eu não quis dizer isso.
— Pronto, pronto, ok. Veem sempre duas gajas. Uma é aquela que estava ali à entrada a pedir, chama-se Mimi. Não a viu?
— Vi, pareceu-me uma mulher muito acabada. Também vive na rua?
— Vive, andava na vida mas agora já não se consegue orientar. Um dia o chulo dela arrebentou-a à pancada, meteu-lhe um olho dentro. Que homem é que vai com uma mulher com um olho à Camões? Você ia?
— Bem, eu não procuro mulheres da rua…
— Pois, você é daqueles finórios, tem a mulher em casa e depois anda a comer a secretária.
— Não, eu acredito na fidelidade e…
O perneta interrompeu-o:
— Olhe lá, tem um cigarro?
— Não, não fumo.
— Atão vou até lá fora cravar um à Mimi.
O silêncio era absoluto e a igreja mergulhara numa penumbra ameaçadora. Simão sentiu-se quase a sufocar, uma necessidade urgente de sair dali apoderou-se dele. Levantou-se, e atravessou a coxia central num passo meio atabalhoado.
Lá fora, sentados no murete ao cimo da escadaria, Mimi e o perneta fumavam um cigarro. Enquanto Simão se aproximava, a mulher observava-o de alto a baixo. O perneta foi o primeiro a falar:
— Já vai indo? Nós ficamos por aqui à espera da última ceia.
— Da última ceia?
— Sim, nós chamamos à festa a última ceia.
— A última ceia porquê?
— Ora, porque nunca sabemos se será mesmo a última. Dizem que nem Jesus sabia, né?
Simão não sabia o que dizer. Sem quase reflectir, meteu a mão no bolso e tirou uma nota de 5 euros.
— Tome lá, uma ajuda para a última ceia.
— Não precisa dar, já me deu.
— Como? Não estou a perceber.
— Quando você chegou à igreja, deixou cair no chão uma nota igual e eu guardei-a. Você nem deu por isso.
Depois de uma breve hesitação, Simão dirigiu-se à mulher:
— Então fique com ela Mimi.
A mulher sorriu e guardou a nota em silêncio.
— Apareça aqui quando quiser, bacano. Podemos conversar mais.
— Sim, vou aparecer.
Simão afastou-se sem olhar para trás. O vento fresco do fim de tarde ajudou a clarear-lhe as ideias. Então sentiu o desconforto da mentira: sabia que não mais voltaria àquele lugar.
*a obra que ilustra esse conto é "Comedor de los pobres", de José Guitérrez Solana
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