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a primeira vez - 8

Atualizado: 14 de jan. de 2021



da série a história de Johny Skai


- por malu baumgarten


As pernas lhe falharam pela primeira vez no dia mais bonito do verão de 2013.

Era fim de tarde na Avenida Saint Clair e uma brisa fresca aliviava a quentura do sol. Adolescentes com shorts curtos à sombra das grandes árvores conferiam à rua uma sensação de balneário. Johnny carregava um enorme buquê de flores para Odette, sua namorada franco-canadense, na esperança de amolecê-la depois da rusga da noite anterior. Odette era uma mulher de seus cinquenta anos, vivaz, que gostava de saias esvoaçantes e echarpes, e tingia de ruivo os cabelos longos. Dona de uma inteligência aguda e crítica, era sempre a alma da festa. O encontro com ela assinalara uma transformação radical na vida de Johnny. Nada permanecera intocado por sua passagem. Da maneira informal como ele passou a se vestir, até as posições políticas progressistas que assumiu dali para a frente, os dois curtos anos nos quais ela o amou foram seminais na gênese do Johnny pós-divórcio. Ali estava um homem que, ciente que a paralisia e a morte o aguardavam, ansiava por viver sua vida com sabor, com sensualidade, e ao extremo. Odette, estimulante, alegre, inquisitiva, forçava seus limites, e ele a amava com fervor. Ela, porém, tinha seus dias ruins, era dada a enxaquecas e incapaz de admitir um erro. Quando se aborrecia, abandonava-o à solidão, e para ele, a única maneira de tê-la de volta era desculpar-se, mesmo quando sentia que não cometera falta alguma. Neste aspecto, a relação não era muito diferente de seu defunto casamento com Tracy.

Johnny contemplava as pombas no telhado da St. Mathew’s United Church. Eram muitas, e tinham uma vida social agitada. No verão os rituais de corte e acasalamento eram constantes no estacionamento e calçadão em frente à igreja, e os animais estavam bonitos, já que a clima proporcionava comida e calor. Caminhava devagar, porque seu pé direito dera para se arrastar, atrapalhando-lhe o movimento. Tinha dificuldade para manter ereto seu 1,83m de corpo magro. Adiante, uma criança loura e esguia, menina de uns 12 anos, jogava sementes para o alto. As pombas planavam ao redor dela, e aterrissavam umas sobre as outras, amontoando-se para alcançar o alimento que caía ao solo. Um gavião sobrevoou o velho prédio do McDonald’s e entre o buquê e o pé que se arrastava, uma revoada de pombos foi ao ar, espantada. Johnny sentiu asas a roçar seu rosto e viu o pavimento aproximar-se rápido. Esticou a mão que segurava as flores e caiu sem largá-las. Com o outro braço tentou amenizar a queda, mas acabou socando as próprias costelas num movimento desordenado e doloroso.

Deitado sobre a barriga, olhou para a frente, resolvido a ignorar a dor. O chão estava repleto de folhas e cocô de pomba. As aves, atraídas pela menininha, voltavam a aterrissar na calçada. Vistas de perto eram grandes e tinham muita personalidade. Comiam as pequenas sementes de painço e também pedrinhas, farelos de pão, biscoito e pizza. Devolviam-lhe o olhar curioso. Algumas andavam lado a lado, como pares de homens em casacas. Tinham peitos grandes e arrufados e pernas musculosas, e viravam ligeiramente a cabeça, como se tentassem entender a conversa. Falavam uma língua que ele não compreendia, composta de “rurus” e outros sons mais guturais e íntimos. Os grandes pombos majestosos continuavam a cortejar as fêmeas, arrastavam as asas perto de seu rosto, em movimentos de varredura e semicírculos elegantes. Pombos juvenis o olhavam com inocência, e ele pela primeira vez notava a diferença de proporção entre o bico e as patas, que pareciam enormes, comparadas ao resto do corpo das avezinhas. Apoiando-se nos cotovelos ergueu os olhos e viu, do outro lado da rua, no alto, parte de um mundo distante, a porta e o sinal da marquise do bar chamado Dave’s..., com três pontinhos, e a padaria Pain Perdu com suas mesinhas na calçada. Havia pessoas por lá, pequenas quando comparadas aos pombos.

Pernas finas com pés grandes em tênis de cano alto e calça jeans pararam ao lado de sua cabeça. Uma mão jovem e ossuda ofereceu-se à sua. Ali estava a menina, alta, magra, com tranças loiras e um sorriso amigo, carregando seu saco de painço. Johnny tomou daquela mão e levantou-se devagar. Enquanto equilibrava-se nas pernas traidoras, viu a morte a mirá-lo com olhos diretos, antes de dobrar a esquina da Avenida Saint Clair com Rushton Road. Tinha cabeça de gavião e unhas pintadas de vermelho vivo.

as imagens que acompanham este capítulo são de ©malu baumgarten

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