- por maíra baumgarten -
da série isolada, memórias e cotidiano
Anos 1960, meus pais trabalhavam e eu ficava com minha avó paterna, uma chinoca, pequena e gordinha, de cabelos pretos, compridos e muito lisos que usava presos em um coque no alto da cabeça. Ela era analfabeta, por isso não lia histórias para mim, e nossa principal diversão era ouvir novelas em um grande rádio, peça importante na casa. Minhas principais lembranças desse período são as novelas e esse tempo compartilhado com minha avó, que não era uma pessoa fácil, mas me amava e era boa para mim. Creio que o gosto pelo drama, o teatro e, mesmo a literatura tem suas raízes nesses doces momentos da minha infância, assim como a música em mim vem da minha mãe, que é minha voz.
Lembro, também, de acompanhar atenta e apreensiva no rádio as notícias sobre a deposição de Jango e a resistência de Brizola. Meus pais participaram da vigília em frente ao palácio e traziam notícias frescas que complementavam as do rádio. Nunca esquecerei o dia em que fui para a esquina da nossa rua, a Olavo Bilac, com a Av. João Pessoa, de mão com minha mãe, levando uma pequena bandeirinha do Brasil, cantar a música da legalidade e ver Brizola passar.
Em outro rádio ouvimos tensas, alguns anos depois, as notícias do desenvolvimento do golpe militar. Minha avó já não morava conosco porque meus pais haviam se separado e o rádio se foi com ela. Minha mãe agora não mais trabalhava. Precisou ficar em casa com as filhas. Minha tia veio para ajudar, e com ela, minha prima e depois minha avó materna. Havia uma grande diferença de idade entre nós, as crianças: quase seis anos da irmã do meio e oito da menor, cresci solitária e logo que aprendi a ler essa passou a ser minha atividade favorita. A outra era ouvir as histórias de minha mãe, que gostava de falar sobre tudo, mas principalmente sobre Rio Grande, nossa cidade natal, e os tempos em que lá viveu na casa materna.
Sua narrativa era vívida, poética e era delicioso ouvir as aventuras e desventuras da grande família, os problemas e as anedotas, como a vez em que minha avó saiu para a rua toda arrumada, de chapéu e de chinelo caseiro. Passear por ruas da cidade pela mão da imaginação de minha mãe, saber sobre seus sonhos e medos, suas dores de adolescência (um grande amor naufragado por intromissão da família do namorado, que tinha outros planos para o moço), a morte do pai de quem era muito próxima, as dificuldades da família para sobreviver com uma pequena pensão e o trabalho da mãe, a decisão de que apenas os meninos iriam à escola, pois não havia como enviar todos. Os meninos foram priorizados, pois teriam que sustentar suas próprias famílias. Minha mãe aprendeu a ler com a namorada de um irmão. Desde então passou a devorar os livros da biblioteca de meu avô, que havia sido um amante da literatura.
As histórias de minha mãe que iam de memórias a sonhos, comentários sobre livros, crônicas cotidianas e, de outro lado, as novelas de rádio com minha avó formaram a base sobre a qual meu amor pelos livros e por narrativas diversas se construiu, assim como minha vontade de entender a sociedade em que vivemos e que nos forma.
fotografia: Ian Halac/ Unsplash
ig: @ianhalac
Comments